release | imprensa
Release - por Caetano Veloso

Faz algum tempo que venho ouvindo com curiosidade e agrado uma voz de mulher que impressiona pela firmeza, pela limpeza do som, pela naturalidade da afinação. É uma voz que ouvi primeiro casualmente no rádio do carro e que sempre me fez parar para atentar e me perguntar: quem é essa cantora que tem a emissão lisa (sem vibratos) mais impressionante que ouvi em muito tempo? De quem é essa voz encorpada e delicada, de quem são esses glissandos seguros e de grande efeito experimental sem sombra de vulgaridade? Aprendi o nome de Rita Benneditto ao encontrar as respostas a essas perguntas. Agora, em parte num movimento de buscar usos significativos para suas invenções vocais, Rita desenvolveu esse projeto a que deu o nome de Tecnomacumba. Os cantos e toques das religiões afro-brasileiras e sua sintonia com os ritmos desenvolvidos no uso de instrumentos eletrônicos. O resultado é rico, honesto e sugestivo.

O disco é um produto de nível profissional impecável, uma prova de que o Brasil anda com as próprias pernas. As combinações rítmicas e timbrísticas das programações eletrônicas com os instrumentos tocados por gente são equilibradas. O repertório é uma antologia de composições sobre o tema das religiões africanas no Brasil - sempre emolduradas por cantos saídos diretamente dessas práticas religiosas. Às vezes somos levados a nos perguntar coisas como, por exemplo, se o canto sobre Tempo ecoa as lavadeiras de Monsueto ou se o samba de Monsueto é que foi tirado daquele canto. Assim, há um rendado de motivos, uma rede de lembranças e referências que dão uma textura interna especial ao trabalho. O resultado fica mais para um pop elegante, em que uma boa banda de acompanhamento é temperada por sons tecno, do que para um mergulho radical no mundo dos batuques e da eletrônica. Mais uma vez, o que ressalta é a voz de Rita, sua segurança simpática (isso não é fácil nem freqüente), seu timbre cheio, seus ornamentos chiques porque personalíssimos, sua nobreza maranhense.

Esse disco tem um futuro intrigante e pode vir a dizer mais do que parece agora. Vamos ouvir e esperar.


PARA OUVIR, DANÇAR E CELEBRAR - por Jean Wyllys

Depois de encantar platéias pelo Brasil com o surpreendente show Tecnomacumba, a cantora Rita Benneditto põe na praça, pela gravadora Biscoito Fino, um CD homônimo e igualmente sedutor em sua proposta musical. Tecnomacumba é mais que um disco de músicas. É uma intervenção cultural que coloca a maranhense Rita Benneditto entre as mais musicais, criativas, sensíveis e afinadas intérpretes da MPB surgidas dos anos 90 pra cá. Cada vez mais consciente do caminho que escolheu para trilhar no terreno musical, Rita Benneditto não só assinou com o guitarrista Israel Dantas na produção desse seu quarto CD como arranjou uma de suas canções - o "Canto para Oxalá", de domínio público. Sem perder a qualidade de um disco de música-popular-pop-de-raiz-brasileira, capaz de incendiar as pistas de dança e, ao mesmo tempo, emocionar, Tecnomacumba busca mostrar as intersecções entre a MPB, sons eletrônicos e as cantigas, pontos e rezas das religiões afro-brasileiras (de orixás, voduns e inquices e também as de caboclos e pretos velhos) eivadas de sincretismos católicos e kardecistas.

O prefixo tecno, entretanto, quer dizer menos música eletrônica e mais tecnologia, no sentido de atividade humana que produz a cultura. Graças à tecnologia Oxóssi construiu seu ofá e Ogum forjou, do ferro, as suas armas, segundo a mitologia africana. Graças à tecnologia o homem construiu para si tanto os primitivos tambores quanto os contemporâneos sintetizadores, sem falar dos meios de comunicação capazes de globalizar o que é local e vice-versa. Conexões entre aspectos culturais locais com o que é globalizado não são novidades na história da música. Mas depende de cada artista promover o desvio ou se repetir. Rita Benneditto promove um desvio significativo. Não por acaso ela abre o CD com uma saudação a Exu e, depois de saudar os outros orixás, desfila uma série de pontos e cantos em homenagem às suas diferentes invocações ou nomes (inclusive à sua faceta feminina, a pomba-gira), já que nada se faz sem Exu, nem ruptura nem repetição. Exu é aquele orixá que pode romper a tradição e promover a mudança. Ele é o próprio movimento da vida. E, em consonância com Exu, Tecnomacumba não é tradição - é tradução.

Rita Benneditto retoma aquele sentido amplo que a música tem para os negros africanos: o de que a música não se presta apenas à fruição estética e ao prazer - ela é meio de transmissão de conhecimentos entre diferentes gerações, logo, fundamental para a cultura de um povo; aquele sentido de que a música é um meio de comunicação entre o mundo dos homens e o mundo sagrado (por isso, canta-se muito nos terreiros de candomblé e umbanda, sobretudo, para celebrar o prazer de viver, dançar e se divertir); o sentido de que a música - sempre produzida pelos tambores - é condutora de axé, a força sagrada da vida.

Tecnomacumba resgata o sentido amplo da música e revela que a MPB deve muito às religiões afro-brasileiras. E, para tanto, Rita Benneditto não canta só aquilo que é evidente nesse sentido, como as canções "Rainha do mar", clássico de Dorival Caymmi, e "Iansã", de Caetano Veloso. Ela apresenta, totalmente recriadas, canções quase esquecidas como "Domingo 23", do mestre Jorge Benjor; "Cavaleiro de Aruanda", de Tony Osanah, gravada em 1973 por Ronnie Von; e "Coisa da antiga", de Wilson Moreira e Nei Lopes, já gravada por Clara Nunes (aliás, nesta, Rita Benneditto, de maneira genial, reconhece uma reverência aos pretos velhos da umbanda).

As interpretações e a textura musical de cada canção são de uma riqueza que só mesmo uma artista com o talento e a criatividade de Rita Benneditto poderia produzir. E não se trata só da mistura que ela faz de música popular, cantigas e pontos das entidades e sons eletrônicos, mas do fato de Rita Benneditto colocar a interpretação e a sonoridade à mercê do orixá ou entidade reverenciada: ela é sublime ao interpretar "Oração ao Tempo", de Caetano Veloso, contando com o auxílio luxuoso do violinista Nicolas Krassik; ri e é sensual quando canta "É D'Oxum" (Gerônimo/Vevé Calazans); coloca ecos na voz ao cantar "Baba Alapalá", de Gilberto Gil, para saudar Xangô, o orixá ancestral do reino de Daomé e senhor dos trovões; e põe tambores vibrantes como são os ventos de Iansã em "A Deusa dos Orixás" (Toninho/Romildo), também pinçada do repertório de Clara Nunes. Sem contar que "Jurema" - ponto de domínio-público já gravado por Rita Benneditto em seu primeiro disco - aparece totalmente recriado, mas não menos impactante. Aliás, foi a curiosidade das pessoas em relação à sonoridade de "Jurema" que levou a cantora a cunhar o termo "tecnomacumba" para explicá-la. Outra canção já gravada por Rita Benneditto em seu primeiro disco é "Cocada" (Antônio Vieira), agora recriada em levada drum'bass e dedicada aos erês.

Tecnomacumba ainda tem o mérito de ser uma representação positiva da livre convivência entre os credos num momento de crescente intolerância religiosa. E não esperem dele o rigor de uma pesquisa acadêmica nem a chatice de um disco hermético, para poucos. Tecnomacumba tem o sabor da tradição oral. Veio para cair na boca do povo. Oxalá, tomara! Oxalá, Deus queira!

[JEAN WYLLYS É ESCRITOR E JORNALISTA]