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SOM E FÚRIA - por Zé Miguel Wisnik

O CD Som e Fúria reuniu as cantoras Jussara Silveira e Rita Benneditto num encontro de vozes e repertórios inesperados. As bases instrumentais, discretas e eficazes, sem deixar de ser exuberantes, estão inteiramente a serviço das personalidades vocais das duas cantoras, suas afinidades e suas diferenças, explorando canções matriciais e superposições em tramas polifônicas, que remetem a cânticos arquetípicos e ao mesmo tempo à exploração não convencional das sonoridades.

Rita canta “Milagre”, do repertório do grupo português Madre Deus (“Quero ouvir a sua voz”), que Jussara ecoa com “Alguém cantando”, de Caetano Veloso. As melodias e as vozes se entranham umas nas outras, convidando, propiciando e incitando ao canto. Na sequência, Rita entoa virtuosisticamente “A sílaba”, de Zeca Baleiro, cujas brincadeiras rítmicas, melódicas e fonéticas remetem humoradamente à música árabe, a fanfarras ciganas, a certos padrões universais de cinco notas, chamados “cinquillos”. Passando pela parlenda anônima “Trilho trole trem”, o jogo das sílabas desemboca nos sambas de roda do Recôncavo Baiano chamados por Jussara, tudo atingindo, sem perder a relação com “A sílaba”, uma somatória polifônica intensa.

Jussara canta a “Ave Maria” de Schubert, seguida de “Outra noite”, também de Schubert, na versão de Arthur Nestrovski. A polirritmia da partitura original da “Ave Maria”, unindo pulsações binárias com ternárias, se combina de maneira inesperada, mas envolvente, com percussões de candomblé que atravessam toda a canção e seguem por “Outra noite”, de maneira hipnótica. Unindo-se a esse substrato, e apontando para a música de transe, “Terra de caboclo”, cantada poderosamente por Rita, acompanhada pelos timbres vocais de Jussara na região aguda, conduzem a melodias indígenas (“Iô Paranã)e afro-brasileiras (“Ongorossi”), reunindo os componentes primordiais da mestiçagem brasileira.

Um samba de Paulinho da Viola (“Pra não contrariar você”) se une em contraponto com “Matriz e filial”, que se tornou um clássico da música popular brasileira na voz de Jamelão. Através da frase que lhes é comum – “Quem sou eu?” – os sambas brincam com a pergunta sobre as identidades vocais de cada uma das cantoras, à qual respondem com seus timbres, suas entoações e suas extraordinárias capacidades de atravessarem os mais diferentes gêneros musicais.

Tudo isso se concentra ainda mais em “A rosa de Hiroshima”, com as inflexões modais que ligam a conhecida melodia de Secos & Molhados a escalas pentatônicas indianas, alusões às vozes búlgaras, à força feminina que se irradia esplendorosamente das próprias cantoras, à pungência tocante da aparição de vozes infantis, ao sentimento da tragédia e à força vital que é afirmada ainda pelo poema “A bomba”, do mesmo Vinicius de Moraes, autor do poema de “A rosa de Hiroshima”, enunciado como um rap sob o tapete mágico das vozes.

A singela canção final, “Tom de voz”, comemora e dá um fecho a esse encontro criativo e afetuoso.

O CD foi gravado em quinze dias no Vale do Capão, Chapada Diamantina, no interior da Bahia. A escolha do lugar está ligada ao recolhimento e à concentração buscados por Rita Benneditto e Jussara Silveira para a exploração dos veios musicais de suas vozes, viajando por esse repertório multifacetado juntamente com o músico Mikael Muti e a produção musical e artística de Alê Siqueira, em parceria com José Miguel Wisnik. Não por acaso a primeira frase do disco, “É grande o silêncio”, extrai sua verdade da busca autêntica por um lugar, não apenas físico e geográfico, mas mental e espiritual, capaz de respirar as dimensões contidas nesse tecido de canções matriciais.



Em toda mulher a um princípio de mundo - por José Eduardo Agualusa

Assim que comecei a ouvir este disco compreendi que ele iria fazer parte do meu futuro. Tenho a certeza de que daqui a muitos anos continuarei a escutar “Som E Fúria” com a mesma emoção com que me chegou aos ouvidos pela primeira vez.

Como o tempo, este é um álbum circular. As canções dialogam umas com as outras, umas continuando as outras, umas justificando as outras, da mesma forma que a voz de Jussara continua e justifica a de Rita, e vice-versa. Quando se chega ao final, está-se de novo no princípio.

“É grande o silêncio / aguardo o milagre” – é com estas palavras que se inicia a viagem: e o milagre vem. “Som e Fúria” organiza-se num comovente elogio à simplicidade, e à complexidade da simplicidade, defendendo um regresso à matriz de toda a música – a voz e a percussão – num tempo em que o excesso de ruído tantas vezes nos impede de escutar a clara beleza do mundo. Não por acaso, foi gravado no Vale do Capão, entre a água e a pedra, entre a luz e a sombra, ali, tão próximo ao coração da terra.

“Nós sabemos que um tanto / de cada é do outro” – diz-se na última canção, “Tom de Voz”, de Cezar Mendes e Quito Ribeiro –, versos que parecem ter sido escritos para esta parceria sublime, de Rita com Jussara, de Jussara com Rita, desta Rita que já é Jussara ou desta Jussara que é já Rita. Obrigado às duas. Obrigado a Alê Siqueira, Wisnik, Guerra e todos aqueles que tornaram possível um milagre tão bonito.